Narrativas – Quem conta nossa história?

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Quem conta nossa história?

Luana de Oliveira

 

Quando eu era criança…não tenho muitas memórias da infância, apenas alguns flashes. minha vó sempre dizia…menino! não fique o dia todo na rua! quando eu chegar do trabalho, quero essa pia limpa! não me peçam nada no mercado, porque o dinheiro está contado. mulher, você viu o que ele fez com ela ontem a noite? não adianta tapar o sol com a peneira. quando a gente chegar na casa da sua tia, não é pra falar que está com fome. vê se não vai comer o pote de bolacha todo! parece que tem o olho maior do que a barriga! eu fingi que não era comigo, afinal, em briga de marido e mulher não se mete a colher. menina do céu! ouviu os tiros ontem? e a chuva? parecia que o mundo ia se acabar! eu deitei no chão com as crianças e esperei passar. no meu tempo não tinha isso não. filho pedia benção pro vô e pra vó. esses meninos de hoje não tem educação. nem cumprimentam a gente. só ficam nesse diacho de celular. só querem saber de internet. cruz credo! se fosse meu filho dava-lhe uma boa chinelada! onde é que já se viu uma coisa dessas? aqui se faz, aqui se paga. enquanto você morar debaixo do meu teto vai ter que dançar conforme minha música! cavalo dado não se olha os dentes. quem guarda tem. homem de Deus! as coisas no mercado estão pela hora da morte! cada um sabe onde o sapato aperta. quem com porcos se mistura, farelo come. cuidado para não colocar a carroça na frente dos bois. você viu a filha da Maria? tá grávida! quem nunca comeu mel, quando come se lambuza. é nos tempos maus que se conhecem os bons amigos.

 

Quem nunca ouviu alguma dessas falas? Contar a nossa história é passar pelas palavras das nossas avós, mães, tias e de tantas outras mulheres que, desde que somos bem pequenas, acompanham nossos primeiros passos, nossas primeiras palavras. Essas mulheres nos ensinam a viver e a construir um caminho no qual possamos tropeçar, cair e levantar. A sabedoria delas é a todo momento compartilhada conosco. Nem sempre de forma doce e afetuosa, mas sempre com uma generosidade que parece não ter fim. São incansáveis mulheres, às vezes são mães e pais ao mesmo tempo. Carregam em suas costas um peso muito maior do que podem aguentar, mesmo que o dito popular diga o contrário. Mas caminham! E nessa caminhada levam consigo as experiências de uma vida. Quem as escuta? Quem as enxerga? Quem conta suas histórias? Mulheres guerreiras! Assim são chamadas do lado de cá da ponte. Como já cantou o poeta, “uma negra e uma criança nos braços, solitária na floresta de concreto e aço. olha outra vez o rosto na multidão. a multidão é um monstro sem rosto e coração”. É a partir dessas reflexões que puxamos os fios que conduzirão a construção da teia de fragmentos das memórias individuais que, juntas, contribuem para a formação de uma memória coletiva, cartografada a partir de muitas lembranças e percepções compartilhadas nos encontros que aconteceram nos dias 24 e 28/09 e 08, 13 e 21/10/2020 e que fazem parte do Projeto Territórios da Memória, coordenado pelo Instituto Vladimir Herzog, em parceria com o Coletivo Margens Clínicas. Participaram dos encontros homens e mulheres pertencentes a gerações, grupos raciais e orientações sexuais diferentes, moradores e moradoras de bairros das periferias da zona sul de São Paulo.

 

A rua e a rede

A rua aparece nas falas quase como uma extensão das casas. Desde março deste ano estamos passando por um período de pandemia causado pela COVID-19 e a população está vivendo uma série de restrições de circulação pela cidade. No entanto, é possível notar que há uma dificuldade de fazer com que as pessoas que moram nas áreas de periferias cumpram a quarentena. Durante os encontros a rua foi colocada como um espaço de resistência e que proporciona possibilidades diversas de sociabilidade para as pessoas que vivem da ponte pra cá. Essa ideia torna-se dialética quando pensamos, por exemplo, na comunidade LGBTQIA+, que tem na rua uma contradição entre a resistência e o risco. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA), 90% da população trans está na prostituição e mesmo para a parcela dessa população que pode ficar em casa, o espaço doméstico também intensifica as situações de violência. Quem pode ficar em casa? A maior parte das trabalhadoras e dos trabalhadores informais e que são responsáveis por trabalhos relacionados ao cuidado também se concentram nas periferias. Por esse motivo a rua também se torna um espaço de maior risco durante a pandemia. Podemos entender a rede virtual como um novo espaço de sociabilidade? Essa também foi uma questão presente nos encontros, uma vez que a memória é atravessada e construída a partir de objetos e espaços e para a população mais vulnerável o acesso a internet ainda é uma realidade distante

Refletindo sobre a rua como um espaço contraditório entre o risco e a resistência, lembramos a década de 1990, quando o Jardim Ângela foi considerado pela ONU (Organização das Nações Unidas) o bairro mais perigoso do mundo. Em 1996, a Sociedade Santos Mártires, com a ajuda de uma de suas lideranças, o padre Jaime Crowe criaram o Fórum em Defesa da Vida e, juntamente com outras ações e o envolvimento da comunidade, passaram a promover a Caminhada Pela Vida e Pela Paz, tradicionalmente realizada no dia 02 de novembro, e que em 2020, completa 25 anos, mobilizando moradores, coletivos independentes, movimentos sociais, comunidades religiosas e segue seu trajeto que começa no Jardim Ângela e segue até o Cemitério São Luiz. Vale ressaltar que o rap também aparece como protagonista nos nossos encontros e no cenário periférico nos anos 1990, ao passo que se intensifica a necessidade de reconhecimento territorial das periferias como parte integrante da cidade e para que a juventude possa resgatar sua identidade racial. As letras das músicas também criam um sentido de pertencimento ao território como sendo o lugar que possibilita a sobrevivência de quem a ele pertence e coloca a rua como um espaço de resistência. A referência mais citada nos encontros foi o grupo Racionais Mc’s, que surgiu em 1988, no extremo da zona sul de São Paulo e trouxe em suas letras discussões sobre a temática racial, violência policial, por encarceramento, desigualdades sociais e relatos da vida cotidiana periférica. O grupo se destacou a partir dos anos 1990, levou milhares de pessoas aos shows e se tornou referência dentro da produção cultural periférica.

 

Milhares de casas amontoadas, ruas de terra
Esse é o morro, a minha área me espera
Gritaria na feira (vamo chegando!)
Pode crer, eu gosto disso, mais calor humano
Na periferia a alegria é igual
É quase meio dia, a euforia é geral
É lá que moram meus irmãos, meus amigos
E a maioria por aqui também se parece comigo…

 

Na letra da música Fim de Semana no Parque, do álbum Raio-X do Brasil, lançado em 1993, é possível observar toda a contradição da cidade de São Paulo e perceber o sentido de pertencimento que é reforçado e contraposto com outra realidade a todo momento. O trecho acima destaca a dinâmica da vida nas periferias, das moradias e das relações sociais que são construídas a partir desse lugar das contradições, a rua. 

A memória se situa no tempo e no espaço. O tempo passou e novas pautas ganharam força, inclusive devido a intensificação das relações através das redes sociais, que acabou se tornando um espaço real de interação social. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 2017, Mano Brown, vocalista do grupo Racionais Mc’s, reconheceu essas transformações e admitiu que não canta mais algumas músicas, pelo teor machista contido em suas letras e acrescentou em sua fala que o passar do tempo altera as percepções acerca dos fatos que compõem a memória. Essa reflexão também foi colocada num dos encontros e segue reverberando. Quem conta nossa história? 

 

Sororidade

A palavra sororidade, do latim soror (irmã) também esteve presente nos nossos encontros e isso nos convoca a pensar por que uma palavra que sugere empatia e irmandade entre as mulheres está presente num encontro que debate as memórias dos bairros? Talvez nos ajude a refletir sobre uma das possíveis respostas a essa pergunta, lembrar dos Clubes de Mães. Trata-se de grupos de mulheres que, na década de 1970, em meio a Ditadura Militar se articulavam para reivindicar melhores condições de vida nos bairros periféricos. Essas lutas incluíam saneamento básico, transporte, vagas em creches, iluminação pública e se estendiam a política econômica da ditadura. Mesmo que a história dos Clubes de Mães não seja conhecida de todos os moradores e todas as moradoras dos bairros das periferias da zona sul, essas memórias estão inscritas no território através das conquistas das lutas dessas mulheres. Também podemos lançar um olhar sobre as redes de apoio e cuidado estabelecidas entre as mulheres dos territórios vulneráveis para reconhecer suas formas de sororidade, levando em conta que essas mulheres estão sempre acionando essa rede para auxiliar nos cuidados com as crianças, para terem momentos de lazer, estudar, trabalhar e até mesmo para se engajar em lutas sociais. 

Nesse texto optei por priorizar as memórias dos territórios a partir das mulheres, porque as questões relacionadas a elas também são da sociedade como um todo. Basta olharmos ao redor para nos darmos conta de que as mulheres não são apenas a maioria em número nos territórios. Elas também marcam a base da formação dos nossos bairros, das lutas sociais, a chefia de famílias e os trabalhos relacionados aos cuidados. Se, historicamente nossa história tem sido contada a partir do masculino, hoje temos vozes de mulheres ressoando das periferias da zona sul, contando sobre suas lembranças, suas percepções e suas memórias. Tecendo redes de apoio e solidariedade em defesa da vida de outras mulheres, seus filhos e suas filhas, seus companheiros e suas companheiras, desenhando no tempo e no espaço as memórias do amanhã.    

 

FICHA TÉCNICA

 Luana de Oliveira, mãe solo, feminista periférica, professora da Rede Pública Estadual. Mestranda no Programa de Pós Graduação do IFCH – UNICAMP. Atualmente integra uma rede de mulheres no extremo da Zona Sul de São Paulo, com a Coletiva Periferia Segue Sangrando.

 Racionais Mc’s. Negro Drama. São Paulo: Cosa Nostra: 2002 (6:54). 

 GONÇALVES, Réia Silvia. Por que o isolamento social é mais difícil nas periferias. A Ponte. São Paulo, 11/05/2020. Disponível em: https://ponte.org/artigo-por-que-o-isolamento-social-e-mais-dificil-nas periferias/?fbclid=IwAR3WonfppbKKeC0TYRNzoV0aqobQlVfvTe4l9lAcnKV225ve_O5ZDTKiW6U. Acesso em: 21 mai 2020.

 Racionais Mc’s. Da ponte pra cá. São Paulo: Zimbabwe Records: 1993 (8:48).

Homem morre após briga para defender irmã transexual de provocação em SP. G1 São Paulo, 09/11/2017. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/homem-morre-apos-briga-para-defender-irma-transexual-na-zona-sul-de-sp.ghtml. Acesso em: 01 nov 2020. 

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes; RAMOS, Emerson Erivan de Araújo. Vítimas invisíveis: pessoas LGBT+ na pandemia de Covid-19. Le Monde Diplomatique Brasil, 09/07/2020. Disponível em: https://diplomatique.org.br/vitimas-invisiveis-pessoas-lgbt-na-pandemia-de-covid-19/. Acesso em: 02 nov 2020.

CARVALHO, Lauro; PATERNIANI, Stella. Os efeitos sociais da pandemia no trabalho e na renda dos mais pobres. Brasil de Fato, 10/07/2020. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/10/os-efeitos-sociais-da-pandemia-no-trabalho-e-na-rendados-mais-pobres. Acesso em: 01 nov 2020.

Dificuldades de acesso à internet prejudica moradores de Heliópolis durante a pandemia. UNAS, São Paulo. Disponível em: https://www.unas.org.br/single-post/dificuldades-de-acesso-a-internet-prejudica-moradores-de-heliopolis. Acesso em: 02 nov 2020.

A Sociedade Santos Mártires está localizada no centro do Jardim Ângela e conta com 22 serviços sociais. Disponível em: https://www.dcl.org.br/noticias/diocese/279-sociedade-santos-martires-valorizacao-da-vida. Acesso em 02 nov 2020.

 Disponível em: https://fb.me/e/1ypwzBypL. Acesso em: 02 nov 2020.

 RACIONAIS MC’S. Fim de semana no parque. São Paulo: Zimbabwe Records: 1993 (7:05).

 BALLOUSSIER, Anna Virgínia. “Tem música que não canto mais”, diz Mano Brown sobre letras machistas. Folha de S. Paulo, Ilustrada, São Paulo, 13.12/2017. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/12/1942874-tem-musica-que-nao-canto-mais-diz-mano-brown-sobre-letras-machistas.shtml. Acesso em: 03 nov 2020.

BARROS, Henrique Sales. Há mais de 40 anos, Clubes de Mães da zona sul protestavam contra política econômica da ditadura. Agência Mural, São Paulo, 18/12/2019. Disponível em: https://www.agenciamural.org.br/ha-mais-de-40-anos-clubes-de-maes-da-zona-sul-se-manifestavam-contra-politica-economica-da-ditadura/. Acesso em: 02 nov 2020.

Disponível em: https://www.seade.gov.br/seade-divulga-perfil-das-mulheres-no-estado-de-sao-paulo/#:~:text=De%20acordo%20com%20as%20informa%C3%A7%C3%B5es,mais%20do%20que%20os%20homens.. Acesso em: 02 nov 2020.

Disponível em: https://www.seade.gov.br/seade-divulga-perfil-das-mulheres-no-estado-de-sao-paulo/#:~:text=De%20acordo%20com%20as%20informa%C3%A7%C3%B5es,mais%20do%20que%20os%20homens.. Acesso em: 02 nov 2020.